sexta-feira, 14 de setembro de 2012

uma vida de heroína


   Era criança, mas tive que crescer e perdi a infância. Era menina pequena, livre; agora estou aprisionada em toda esta escuridão, onde tudo parece absorver-me, onde cada grito de silêncio me consome. Nesta caixa fechada que é a vida, nesta jaula que é o meu dia-a-dia… E grito, e corro, e fujo e quero desaparecer! Mas a chuva cai, os relâmpagos perseguem-me, os passos dele perseguem-me... Sinto as suas mãos grandes, frias e pesadas em mim, que me consumiram quando menos esperava, que me tomaram quando brincava… Não queria deixar as bonecas tão repentinamente, tinha tempo para viver isto, tinha tempo para crescer, para mudar, para suar, para me doer, para me custar, para sofrer. Não me largaste, nem mesmo quando viste que os meus olhos apenas sugavam os contos de fadas, os príncipes encantados, as espadas que eram derrotadas; não me largaste quando te perguntei o que estavas a fazer; não me largaste quando comecei a tremer. E durante tudo… continuavas a chamar-me criança mesmo depois de saberes o quanto me estavas a tirar isso, o quanto isso doía, o quanto sofria porque nem sequer sabia o que me estavas a fazer, porém depois percebi. Depois de o teres feito tantas vezes, de nunca te importares, de tanto me marcares, por fora e por dentro.
                                                                                                         
   Não voltei a confiar em mais nada, em mais ninguém. O arco-íris perdera todas as cores e estava inundado de preto e de branco, tons de cinza, como fora a minha infância… E as minhas lágrimas continuaram gélidas, densas… E, até, nem sei como depois de tanto ainda tinha lágrimas nos meus olhos, como depois de tudo ainda havia algo tão limpo e puro como a água é, dentro de mim. E fizeste-me sentir culpada. E fiquei muda. O meu redor ficou diferente, comecei a ver as coisas de outra maneira: deixei de ser criança. Tive que esconder o que sentia, resguardar-me, não ser eu própria. E tive que crescer. E hoje tudo me vem à cabeça, cada pormenor… O quanto tudo isso me enojava… Cada momento que só me apeteceu correr, gritar, FUGIR! E tu não deixaste, fui como uma escrava porque, simplesmente, era mais pequena e tu “governavas-me”. Pensava que os olhos das crianças diziam toda a verdade, mas quando olhava para as pessoas de casa, que supostamente não sabiam de nada, pareciam não perceber, não faziam nada. Se calhar sabiam que não valia a pena.

   Tento esquecer o passado, mas ele volta. Parece que sinto tudo como se fosse agora mesmo que se estivesse a passar… o meu coração bater tão forte e eu que não me conseguia mexer, nem sabia que fazer porque estavas a dominar uma simples criança que apenas te tinham pedido para tomares conta dela, não era intenção apoderares-te dela. Mais tarde soube que também o fazias com as tuas próprias filhas, eu própria o vi, e depois disso ainda me fizeste sofrer mais.

   Mas, como fui obrigada a crescer rápido, percebi que há coisas que temos que ser nós próprios a fazer e não podemos esperar pela ajuda dos outros, só podemos contar connosco próprios. E não me rendi, percebi que tinha que ser eu a minha própria heroína, percebi que tinha que ser o meu próprio príncipe encantado e salvar a donzela dos braços daquele monstro! Corri e fui à procura da justiça que se cumpriu e foste para a cadeia! No entanto, o medo perdurou e continuava a sentir a tua presença em mim e à minha volta… Aquele cheiro a cerveja e aquele ambiente gelado que se fazia sentir quando estavas presente. Sabes o quanto as crianças têm medo das sombras à noite? Parecem umas grandes mãos e afinal são apenas ramos de árvores? Para mim eram mesmo as tuas mãos.

   Da noite ao silêncio… Agarrar-me aos lençóis o mais que podia, pensar em histórias cheias de cor e fantasia, e, quando dava por ela, já era manhã. Ia para a escola e via todos os meninos e meninas felizes, trazidos pelos pais que se despediam com um beijo: e eu saber que os meus pais nunca estavam comigo e me tinham deixado aos cuidados da irmã da minha mãe que tinha um marido louco e que durante tanto tempo escondera aquela faceta sua. E, apesar de ele não ter voltado e até saber que não me faria mais nenhum mal, todo aquele passado não desaparecia, não se apagava, não era leve, mas sim pesada, vinha sempre à minha mente, à minha pele, ao meu pensamento, ao meu dia-a-dia, aos meus olhos claros e encharcados como o mar salgado. E dói tanto.

   Hoje? Não sou ninguém novo, apenas renovado. Aprendi a saber viver com as coisas que andam à volta da minha cabeça, aprendi a guardar e a conter lágrimas, aprendi que o silêncio pode ser dos nossos melhores amigos e aprendi que quando uma pessoa se rende, tornar-se uma vencida. E eu não sou uma vencida, sou uma lutadora. Não pensei em viver, pensei em sobreviver. Não pensei em sorrir, pensei em não chorar. Não pensei em levantar, pensei em nem sequer cair. Agarrei a alma e prendia-a a mim para que não escapasse, já que o meu corpo parecia tê-lo feito. Nunca tive nada do que muitos outros tiveram, mas até fui mais felizarda do que tantos outros. Porém, percorri uma guerra constante entre a sobrevivência e tentativa de felicidade que só a fui sentindo quando, poucas vezes, via a minha mãe e sentia o seu odor; quando viajava com o meu pai; quando estava fora daquela casa; quando via a “mãe” sorrir, nem que fosse só para ver o brilho dos meus olhos.

 Não procures pelo teu herói, sê tu ele mesmo. Aqueles que conheces? Só mesmo nos livros de aventuras. Se não somos nós próprios a salvar-mo-nos dos abismos, quem será? Há sempre alguém do nosso lado mas…e quando não houver ninguém? Temos de ser nós a aprender a amar, ninguém nos ensina isso, apenas podem ajudar-nos a descobrir maneiras de amar. Se não fores o teu próprio herói, a chuva pode ser tão barulhenta como a descolagem de um avião; Se não fores o teu próprio herói, podes perder a alvorada; Se não fores o teu próprio herói, será que haverá alguém que o será?




- texto baseado no livro: “Abandonada” de Anya Peters (nome fictício) – história verídica


   

Sem comentários:

Enviar um comentário