quarta-feira, 21 de maio de 2014

Carta

Nem sei como te cumprimentar... pois um “bom dia” nunca é bom quando é amargo, e nunca é dia quando não vem com a noite; não sei como te cumprimentar... pois uma “boa noite” nunca é boa quando passada solitariamente, e nunca é noite quando não se viveu o dia.
Decidi escrever-te, finalmente. Não escrever-te no sentido em que escrevo para ti (até porque não desejo respostas envoltas de silêncio, nem rejeições por meio de eufemismos e desconhecimentos de causa), decidi escrever-te porque decidi escrever sobre ti. Nada nem muito espontâneo, nem muito pensado. Decisão apenas. Deixei o olhar fixo da visão paisagística da minha janela para o concentrar neste papel, nesta caneta velha e útil para quando pretendo desabar sobre mim própria, como que para a minha consciência, na ignorância dela; para a sua ignorância de psicologia e de consolos, paredes de confissão sem escuta paralela. Só eu e ela. E esta caneta e este papel. E tu. Tu como memória quebrada e fraccionada em momentos, em suspiros, em cobiças, em ódios, em murmúrios, em... meu redor. Mas... 'shhh'. Não gesticulo os lábios em modo de conversação. Quando o tema és tu, apenas pretendo gesticular os meus lábios em simultâneo com os teus. Saborear da tua carne que desassossega o meu desassossego num pranto de água movediça. Oh, os teus lábios como os quero. É tão grande a minha cupidez de ti. Tu... que nem sei se existes mesmo ou se é apenas o meu subconsciente que te idealiza. Oh, como é real o sentir-te em mim. Leve e gentil como a seda. Firme e resoluto como a rocha.
As palavras fogem de mim. Transpiro ansiedade. Continuo a escrever(-te) sem destinatário. E lembro-me dos teus olhos, do teu olhar profundo e lacónico, como que de um lince que avista a sua presa. Ouço a chuva. Mal sabe ela as vezes que os meus olhos abundaram, dignos de um duelo com as suas mais tenebrosas tempestades. E lembro-me de ti, uma vez mais. Enquanto encosto o meu rosto e a minha boca ao vidro gelado e o embacio de suspiros ingratos. Ingratos por saberem que vivem simplesmente por dependência humana e não por necessidade. São dignos de tão injustificável infelicidade? … Injustificável? Quando são por ti os suspiros meus, quando são de ti as minhas lágrimas réus, quando é por ti esta saudade inflamável. E o que é a saudade mais do que uma corda ao pescoço de um inocente condenado à perpetuação da sua própria solidão? Pára. Larga-me! Desaparece desta minha epifania interior. Não quero sentir mais esta nostomania por saber que existes, quando nem a certeza tenho da tua existência. Mas sinto a tua presença. Oh, que doença. Que doença incurável e intratável de te ver cegamente. De te ouvir surdamente. Mas de sentir a tua presença. Os teus lábios que me tocam e me viciam de ti. Essa sufocação constante que mais tende em me fazer explodir.
Decidi escrever-te de mim para ninguém, mas para ti. És a brisa mais poluída que já senti, mas que melhor jamais respir(ar)ei. Apenas te inspiro por ser acto involuntário, porém, se não fosse, não teria qualquer outro efeito contrário. És aquilo que mais quero quanto menos quero.


De alguém,

para: (além de ti) ninguém.


sexta-feira, 16 de maio de 2014

"Cada um por si"

Passam anos, dias, horas... Passas tu pelos momentos que o tempo te traz... Contrarias-te com o destino, seja ele quem for, mas a questão é que "Não são poucas as vezes que nos esbarramos com o nosso destino pelos caminhos que escolhemos para fugir dele"*. Ainda não aprendeste que há certas coisas tão fáceis de se dizer como o ar que se respira; que há promessas tão fáceis de se pronunciar como o pó da estrada. Mesmo assim, continuas a deixar-te hipnotizar, petrificada de olhar fulminante e brilhante com tudo o que lês e ouves. Parece que tudo isso que captas é logo digerido, é logo transformado em sangue do teu sangue. E mesmo quando cais e esfolas a pele até sangrares, continuam ali, continuam ali os vestígios de tudo aquilo que, estupidamente, interiorizaste e não racionalizaste, formando-se cicatrizes permanentes. Mas pensas o quê? Que há realmente almas purificadas capazes de se arrependerem e estenderem a mão para ti? Dá-lhes um enorme prazer só de te ver aí, enjaulada, implicitamente por eles próprios e por ti mesma também. Tais foram as palavras e as promessas que até te mumificaram, e deixaram-te sem qualquer património. Despiram-te e tu deixaste! Vendaram-te os olhos e tu nem deste conta! Agora estás sozinha sem qualquer mapa, bússola, muito menos um tesouro... Emprestaste-te a eles mas não foram capazes de te devolver novamente. Acreditaste nos outros e não em ti, e é isso que está errado. Acredita em ti primeiro e, só depois, e mesmo desconfiando, acredita nos outros. É triste, muito. Cada vez com menos pudor se vive a lei do "cada um por si", implique o que isso implicar. 

Algarve



*Jean de La Fontaine

domingo, 11 de maio de 2014

O que é a mudança?

Muitos falam em mudança. Mas o que é mudança afinal? Algo abstracto ou físico? Algo permanente ou inconstante? Realidade ou fantasia? Tolerável ou intolerável? Visível ou invisível?
Quando algo nos parece como errado pensamos logo em mudar, pensamos logo em mudança e é aqui que faço o meu apontamento... Será mudança sinónimo de melhoria? Ou mudamos às cegas? Com um simples intuito de vermos um resultado diferente? Normalmente, quando presenciamos algo que achamos que está mal, o primeiro pensamento reverte-se em “mudar isso”, “mudar essa coisa” e será que não deveríamos pôr em causa a nossa posição? Mudarmo-nos? Temos a certeza que o que está bem somos nós ou será que nos deveríamos pôr em causa? Porém é aí que surge a direcção do problema: mudar ou melhorar. Se realmente a intenção é mudar, o processo simplifica-se; agora melhorar... Isso é mais complicado. E, na maioria das vezes, esquecemo-nos da pessoa que está no nosso espelho. Essa mesmo. Nós. E esquecemo-nos porquê? Porque à partida não há nada a “mexer” em nós, já estávamos ali antes. Mas é engraçado que, normalmente, pomo-nos sempre em primeiro lugar, primeiro existe a nossa necessidade, só depois a do outro, só demos é que pomos em causa a conformidade do outro, como quando dizemos a alguém com quem fomos no outro dia almoçar: “Fui eu, o fulano e o sicrano”. "Eu" sempre primeiro. No entanto, no que toca a defeitos, raramente nos enunciamos primeiro, raramente pomos em questão a nossa pessoa. Por isso é que falamos muito em “mudar”, porque “mudar” é fácil quando isso não implica o facto de estarmos errados. Quando pretendemos “melhorar”, para além dos resultados finais serem mais satisfatórios, apesar de mais difíceis e demorados em alcançar, vamos olhar para nós e procurar resolvermo-nos caso seja o caso. Admito que às vezes não seja, mas que tal olharmos o espelho não só com o olhar comum que se faz à nossa pele e ao nosso aspecto, ao que realmente vemos de verdade, e começarmos, deveras, com o Homem que está no espelho? Homem por inteiro, Homem de Razão e Emoção?




segunda-feira, 5 de maio de 2014

"Sonhos"

Tudo o que sempre quis ser não fui. Tudo o que sempre quis não tenho. Todas as ambições que fui acumulando com o passar do tempo foram-se tornando em sonhos. Sonhos. Meros sonhos. Eu acho (infiltrada num certo paradoxo entre a certeza absoluta e a dúvida inocente) que quando alguém diz ter um “sonho”, é equivalente a ter nada. Há que ter ambições/objectivos, não sonhos! Sonhos são para aqueles que criam e recriam imagens e ideologias queridas que nunca chegam ou chegarão a alcançar. Sonhos têm-se durante os sonos e, até hoje, nunca acordei dentro de um, aliás, eles dormem em mim. Para quê sonhar? O sonho é uma névoa que se atravessa na nossa vista. Se eu quero algo, não, não é o meu “sonho”, é o meu objectivo e, portanto, é para ser alcançado! Dá-se o nome de sonho àquilo que muito se quer mas que se considera algo com uma certa impossibilidade. “Nada é impossível!”, bem, na realidade, impossibilidades existem, como, de repente, um elefante voar, mas a impossibilidade pode ser contornada, fintada, vendada, e é aí que está toda a beldade da coisa, o podermos transformar os nossos sonhos em ambições. Sonhos todos temos, mas nem todos somos capazes de lapidá-los em verdadeiros objectivos e concretizá-los.

domingo, 4 de maio de 2014

O enredo da solidão

Creio que o que custe não seja estar só, fazer parte da solidão. Creio que o que custe não seja estar sozinho. O que custa é o sentirmo-nos sós, é o sentirmos solidão, é o sentirmo-nos sozinhos. É o sentimento que custa. É agradável ir à beira-mar e deitarmo-nos na areia húmida a olhar o céu e a ouvir o mar e todo o ambiente balnear. É agradável abrir a janela e sentirmos a primeira brisa da manhã. O que custa é sentirmos que não fazemos falta. O que custa é saber que poderíamos fazer essas coisas acompanhados. O que custa é a dependência formada da necessidade de partilharmo-nos com alguém. O que custa é o hábito criado da presença de alguém. O que custa é a rotina que se formou na mais simples das simplicidades. O que custa é saber que se era e depois ser-se nada do nada. O que custa é ser-se a peça do puzzle cuja metade está em falta E saber disso. Talvez se víssemos todas as outras peças sem par não fazia diferença, não se sabia que, afinal, havia o encaixe, não se denominaria de puzzle sequer. Mas vimos que sim. Sabemos que sim. E é isso que mais custa: saber. Mas ninguém quer viver na ignorância. E é o cego aquele que mais quer ver.