quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ao encontro

Foi o primeiro passo da manhã. A areia estava fria e o sol era forte, apesar de ainda pálido. As ondas batiam, resolutas, nas rochas e a espuma cobria-as da baixa temperatura do mar. Sentei-me na última rocha que havia na ponta do paredão, comigo na minha mente e com uma margarida na mão. Comecei a contar cada pétala daquela flor, não me parecia certo dar um número ímpar, simplesmente não parecia certo... Tirei o meu chapéu da cabeça e pousei cada pétala, à medida que as voltava a contar, dentro dele. O número era par. E, agora, não parecia certo ser número par quando já me tinha conformado do contrário... mas se realmente me tivesse conformado porque haveria de voltar a contar? Nada naquele dia parecia certo. A praia deserta, o mar gelado, a rocha quente, o sol forte pálido, a minha blusa branca com uma pequena mancha de chocolate bem ao lado de um pequeno botão e, à medida que o meu olhar se concentrava nele, mais ficava o pequeno botão preso por um fio... Eu também estava assim: presa por um fio. Como uma marioneta tonta. Nada parecia certo. Não costumo usar chapéu, não costumo beber chocolate quente pela manhã, não costumo ir para a praia apenas porque me apetecera. Não sei o que fazia ali, na última rocha que havia na ponta do paredão, uma rocha solta e trémula, cinzenta e suja. Era bem cedo de manhã e seria normal achar normal que fosse normal a praia estar deserta. Apenas um bando de gaivotas no meio da areia, uma multidão de cabelos esvoaçantes na última rocha que havia na ponta do paredão, uma maresia fria. É normal ser-se normal? Ter que se ser normal? Ter que se mostrar normal? E... o que é mesmo a normalidade?

Bem ao longe e ao de leve comecei a ouvir um piano feliz, e os meus pensamentos, esses que tão miúdos, desequilibrados e infelizes eram. E levantei-me. Segui a passos largos aquela melodia que ouvia. Voltei para trás para buscar o chapéu e coloquei-o espontaneamente na cabeça, sem me lembrar sequer de sacudir as pétalas que lá estavam dentro. Fui à procura da melodia que parecia mesmo chamar-me desesperadamente. Podia até ser estranho ser apenas eu a ouvi-la, porém, a praia continuava deserta e, a certa altura, quando a melodia se tornara mais audível, as gaivotas começaram a agitar-se, assim também como o mar. Mas continuava a parecer que era apenas eu ali e a única a ouvir aquele piano. Quando dei por mim estava num beco escuro e ouvia claramente a mesma música. O meu coração batia forte, talvez por medo, talvez por tão bela melodia, talvez apenas por ter feito aquele percurso rapidamente. Por trás desse piano estava um velho. Barbas cinzentas e longas. Olhar melancólico sobre as teclas daquele piano castanho, antigo e rachado. Unhas sujas e todas mal cortadas. E era como se o dia se tivesse encontrado com a noite. O sol com a lua. Pois eu trazia um ar jovem, inocente, limpo. E ele era velho e enrugado. No entanto, tocava uma melodia que soava a Primavera, a jovialidade e a recordação. Fiquei a ouvi-lo durante algum tempo, especada a olhar para ele como se nem estivesse ali. Até que ele parou e, sem olhar para mim, me perguntou "Gostaste?". Engoli em seco. Não estava à espera que ele me fosse pedir a opinião do que tinha ouvido. "Sim", disse eu, "segui a melodia desde a praia até aqui". "Todos os dias, todas as manhãs, toco a mesmo música, neste mesmo local, sempre da mesma maneira, até que ela apareça novamente". "Ela quem?", perguntei eu, receosa de estar a fazer perguntas a mais. "Numa brisa do mar, num raio de sol, numa gota de chuva, num sorriso de uma criança, num olhar de um idoso... Estou à espera que a fé volte. Porque ela foi embora quando o meu coração também se foi". "Às vezes não são as rotinas que nos trazem de volta o que de melhor tivemos. Se calhar é a normalidade, em que nos refugiamos, que nos retira todos os nossos privilégios, sonhos e características. Todos os dias praticas a mesma rotina, talvez seja a altura de subires ao rochedo e procurares tu os outros para que não seja a fé a encontrar-te, mas sim tu a encontrá-la."

No dia seguinte voltei à mesma praia e uma multidão concentrava-se à volta de uma parte do paredão. O piano velho reluzia e os olhos do homem procuravam o futuro. 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

absoluto

Não existe silêncio absoluto.
Há sempre algo,
por mais pequeno e insignificante que seja.
Um relógio.
O vento.
Um portão ferrugento.
O batimento cardíaco.
O próprio pensamento.
A madeira da escada que estala.
Os travões desafinados de uma bicicleta.
O canto leve do pássaro no ninho.
Nem o sono é vivido em silêncio pleno.

Será que existirá o dia
em que vivamos em absoluto silêncio

sem pontos finais


tudo suspenso

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Perdão

Já faz um tempo
que perdi o meu conceito.
A minha voz desvaneceu,
mas quem sou eu?,
Onde estou?

Há uma ferida que dói,
sem qualquer localização,
tal como a minha alma
que anda à deriva no oceano.

Fecha-se o pano,
a porta,
a janela,
e fecho-me em mim.
Soam, esmagadores, todos os segundos surdos
dentro da minha cabeça.
Cada gesto tornou-se doença,
cada suspiro
um calafrio intenso
que fica suspenso
numa forca nascida da escuridão.

É tudo vão,
foi tudo em vão.

Perdão.