sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Rosto de Chuva

A janela convida-me à rua, mesmo estando a vidraça fria a embaciar-me a visão. Hesito mas arrisco. As nuvens estremecem e dão os seus sinais de fragilidade, o que fazia crer que, a qualquer momento, água voltaria a brotar delas. De guarda-chuva irrequieto e frágil, mantive o meu olhar firme ao chão, de modo a evitar afogar um pé nalguma poça. Entre desvios correntes promovidos pelos uivos do ar, acabo por encontrar no meu guarda-chuva um guarda desleal. E, preocupada em não encharcar os pés nas poças, acabo por me mergulhar, distraidamente, no primeiro reflexo. Vejo no reflexo, que essa poça de água aclama, bem mais do que um rosto, que, quando pestanejo, volta a ser somente o seu retrato. Um rosto conhecido mas estranho. Que me faz não saber o que é ele de mim, nem saber se será realmente o espelho de todo este frenesim, que lá vai fervilhando sob a minha pele. Aparentemente inócuo e mudo. 
Volto a andar. E, durante esse vaguear, a precipitação retorna ao seu encanto. O meu rosto rodopia e desfoca-se (talvez assim se enquadre mais a todo este cenário que me envolve). Os tons cinza, o vento musicante, o eco das passadas, a chuva dominante. O meu rosto molha-se, mas a tinta não sai nem se desbota. E a chuva, na sua rebeldia mutante, corrói e ofusca ainda mais. O que vale é que nem sempre a aparência transparece demência e nem sempre a demência gera palavras. Só um silêncio suspenso e oco; a distância, a inimizade, a impaciência. 


Porto

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Sob o olhar do Douro

Um banco vazio,
uma brisa fria
e uma calmaria desdenhada.
Uma paisagem que se pinta
nas cores do Douro,
que quando foge da vista
é na mente tesouro.
O sol que brilha resoluto,
solta de mim a sombra
e o nevoeiro que em dias emergia.
Poeira que se agita
e que dança pelas esquinas dos caminhos.
No banco só,
acompanhada pelos fantasmas
e pela timidez da Primavera.
Encontrei mais um refúgio
e na inexistência uma nova essência.

Às vezes sonho

Às vezes sonho que adormeço
no teu peito, nos teus braços.
Como se o tempo parasse,
a folia se esgotasse
e não houvesse mundo para além desse.

Sinto, nesse sonho, 
a tua pele, o teu calor, o teu odor.
Como se estivesses presente aqui,
como se estivesse suspensa no teu ar.

E sonho de forma tão real
que a saudade foge num suspiro,
e, todo o ar que respiro, 
se desprende num só fôlego,
abarcado numa ânsia desmedida. 

Por que és só sonho
nesta imagem que me envolve?
Parece tudo mais concreto

quando há certeza da sua irresolução,
já que a decepção é feita à nossa medida.

Ainda assim sonho.

Envolve-me e deixa-me fantasiar-te.

O sonho é só meu,
o segredo é só nosso.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

És e não és

És uma amargura sábia
que devoro com o tempo,
sem enjoos, sem descansos,
por olhares frios
na guarida de pinheiros mansos.

És um nó sem ponto,
tinta sem paleta,
num quadro vazio
que a imaginação sustenta
muito mais que a aparência. 

És um olhar fugitivo,
outrora aprisionado,
de uma corrente levemente brusca,
sem destinos ou conclusões,
de firmeza tosca. 

És uma prosa sem palavras,
poucos diálogos, alguns parágrafos.
De afirmações atentas
que se preocupam de nada,
de tensões esquentadas.

És uma curiosidade, um mistério, fervor;
és cansaço, frieza, ambiguidade.
És e não és.
O começo do fim 
e o fim do começo.